AULA
02
Naturalidade
e Sobrenaturalidade da Bíblia
Introdução
Na aula 01, tratamos da Revelação Geral e Especial,
mostrando como existe um relacionamento fundamental entre ambas, que se trata
de como ambas e completam e se tornam o fundamento de toda a interpretação da
realidade.
Essa realidade que interpretamos pode ser considerada em
termos de sua naturalidade. Ou seja, as coisas criadas, que o ser humano
interpreta pesando valores e que apontam para Deus, são, em si, uma realidade
natural. Contudo, por detrás da realidade natural da Criação e como seu
fundamento, existe a sobrenaturalidade, que é a realidade do próprio Deus e que
precisa ser considerada como fundamento da naturalidade das coisas, afinal, é a
sua origem e sentido.
Quando olhamos o mar o nos deliciamos com sua beleza em
termos de sua grandiosidade, força natural, regularidade e a vastidão de seres
que segreda, estamos desfrutando da beleza de sua naturalidade. Não obstante, o
mar é um elemento da Criação que aponta para o Criador, portanto, aponta para a
sobrenaturalidade da realidade que lhe preserva, controla e limita.
Essa mesma relação devemos entender quando nos aproximamos
das Escrituras. E por isso, precisamos considerar os valores naturais das
Escrituras em companhia constante da sua sobrenaturalidade latente.
Escrita por homens
A naturalidade das Escrituras pode ser primordialmente
considerada pelo fato de ser um livro escrito por homens.
O conteúdo bíblico, embora fale até mesmo de coisas que
estão além da naturalidade, como por exemplo, o céu, é o resultado do labor
natural de homens de Deus.
Visto que muitos houve que empreenderam
uma narração coordenada dos fatos que entre nós se realizaram, conforme
nos transmitiram os que desde o princípio foram deles testemunhas oculares e
ministros da palavra, igualmente a mim me pareceu bem, depois de acurada investigação
de tudo desde sua origem, dar-te por escrito, excelentíssimo Teófilo, uma
exposição em ordem, para que tenhas plena certeza das verdades em que
foste instruído. (Lucas 1.1-4).
Lucas atesta que a obra que escreveu foi o resultado de um
empreendimento de pesquisa, a partir da oitiva de testemunhas e análise dos
relatos que lhe foram feitos e, portanto, o resultado de um trabalho dentro da
ordem natural das coisas.
O Apóstolo Paulo pode ser considerado o sistematizador
teológico da fé cristã. Foi ele quem discerniu e ensinou o fundamento da obra
da justificação, embora já houvesse suas sementes nos registros do Velho Testamento
e nas palavras de Cristo, a clareza desta doutrina vem na obra teológica de
Paulo, em suas cartas.
E tende por salvação a longanimidade de nosso
Senhor, como igualmente o nosso amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe
foi dada, ao falar acerca
destes assuntos, como, de fato, costuma fazer em todas as suas epístolas, nas
quais há certas coisas difíceis de entender, que os ignorantes e instáveis
deturpam, como também deturpam as demais Escrituras, para a própria destruição
deles (2Pedro 3.15-16).
Pedro, falando sobre o trabalho do apóstolo Paulo, nos diz
que fora o resultado de uma sabedoria peculiar que ele empreendeu ao considerar
e sistematizar a doutrina da salvação. A sabedoria de Paulo é um componente
natural e os textos que produziu, fruto desta reflexão, devem ser considerados
uma obra natural, de um homem sábio.
Da mesma forma, podemos pontuar sobre livros históricos, cujo
propósito de registro dos acontecimentos é claramente um labor da ordem natural
dos acontecimentos humanos.
Quanto aos mais atos de Salomão, a tudo
quanto fez, e à sua sabedoria, porventura, não estão escritos no Livro da História de Salomão?(1Reis
11.41).
O mote constante do Livro dos Reis: “...não estão escritos
no Livro da História dos Reis... (14.29; 15.7; 15.23 etc)”, aponta para o fato
de que era o produto do registro de observadores, estudiosos da história, do
mesmo modo como alguns escreveram a história das guerras jônicas, dos egípcios,
dos hititas etc.
Não há nenhum problema em se considerar a Bíblia um livro da
ordem natural das coisas, como o fruto do desenvolvimento baseado em aspectos
da cultura humana. A Bíblia é um livro escrito por homens.
O problema quanto à consideração da naturalidade da Bíblia
começa quando a desconectamos de sua realidade sobrenatural. Ou seja, quando
isolamos a naturalidade das Escrituras da sua sobrenaturalidade.
Inspirada Por Deus
Na próxima aula, iremos abordar a “Doutrina da Inspiração”
com mais detalhes, procurando explicar melhor o que é e como funciona o ato
divino de guiar os seus servos para o registro da Escritura. Aqui, porém,
ficaremos no âmbito mais conceitual da inspiração, propondo uma abordagem
integral da Escritura, somando a sua naturalidade à sua sobrenaturalidade.
Embora a Bíblia seja um produto da cultura humana, ela não é
só um produto humano, ou natural. As Escrituras são resultado de um ato
sobrenatural de Deus de se revelar.
Quando Pedro atestou que as cartas de Paulo era fruto de sua
sabedoria, ele destacou que esta sabedoria não era meramente o resultado das ligações
elétricas do cérebro em contato e observação da realidade, Pedro nos diz que
tal sabedoria havia sido “dada” (por Deus) à Paulo.
E tende por salvação a longanimidade de nosso
Senhor, como igualmente o nosso amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe
foi dada (2Pedro 3.15).
Ao se referir à “sabedoria que foi dada a Paulo”, Pedro está
claramente nos dizendo que os escritos paulinos eram fruto do trabalho
intelectual dele, mas que tal capacidade não era meramente natural. O mesmo
Pedro, foi testemunha da sobrenaturalidade da realidade, quando no Monte da
Transfiguração, viu que o mundo natural é sobreposto por uma realidade
sobrenatural e estes estão intimamente unidos. Ele ainda se recorda desta
intima relação entre o natural e o sobrenatural na voz que se ouviu no momento
do batismo de Cristo.
Porque
não vos demos a conhecer o poder e a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo seguindo fábulas engenhosamente inventadas, mas nós mesmos fomos testemunhas oculares da sua
majestade, pois ele recebeu, da parte de Deus Pai,
honra e glória, quando pela Glória Excelsa
lhe foi enviada a seguinte voz: Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo. Ora, esta voz, vinda do céu, nós a
ouvimos quando estávamos com ele no monte santo (2Pedro 1.16-18).
Neste ponto, o que percebemos é que
Pedro está defendo seus escritos e dos outros apóstolos de acusações tais como:
é somente uma fantasia ou um devaneio, igual ao dos escritores gregos ou
romanos. Pedro, em defesa da sobrenaturalidade do ensino dos apóstolos, apela
para o ponto mais concreto de sua observação da intima relação entre naturalidade
e sobrenaturalidade, aqueles dois momentos em que o véu que esconde esta
relação foi rompido: a voz de Deus que foi ouvida no batismo de Cristo e o
Monte da Transfiguração, quando a glória de Cristo foi revelada concretamente e
ele, Tiago e João viram.
Temos, assim, tanto mais confirmada a palavra profética, e
fazeis bem em atendê-la, como a uma candeia que
brilha em lugar tenebroso, até que o dia clareie e
a estrela da alva nasça em
vosso coração, sabendo,
primeiramente, isto: que nenhuma profecia da Escritura provém de
particular elucidação; porque nunca jamais qualquer profecia foi dada por
vontade humana; entretanto, homens [santos] falaram da parte de Deus, movidos
pelo Espírito Santo (2Pedro 1.19-21).
Pedro usa sua experiência com a
sobreposição da realidade sobrenatural à natural para explicar o que realmente
é o ensino que ele e os outros apóstolos estavam entregando à igreja: uma
revelação da verdade divina nascida em Deus e entregue aos homens por meio
naturais, os escritores humanos. Esta é a ideia que ele defende quando diz que
os homens que falaram, falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo.
Naturalidade e Sobrenaturalidade Unidas
na Bíblia e na Vida
Resumindo um tanto a história do
pensamento cristão, podemos dizer que o final do período Medievo trouxe à luz
uma forte influência aristotélica sobre a visão de mundo cristã. Dois nomes,
vamos destacar neste empreendimento: Tomás de Aquino e Guilherme de Ockam.
Estes dois expoentes do pensamento cristão, chegaram à conclusões bem próximas
sobre a realidade.
Eles dividiram fortemente a
realidade sobrenatural da natural. Tomás de Aquino atribuiu alguma relação à
estas suas realidades no momento dos milagres e Ockam simplesmente os tornou
incomunicáveis. Aquino trabalhou com ideia de “Natureza e Graça” e Ockam,
empreendeu o projeto conhecido como “A Navalha de Ockam”.
Aquino dizia que o mundo da
natureza, da ciência natural era tudo o que ocorria na esfera das realidades
concretas e o mundo da graça, o sobrenatural, ocorria numa esfera fora do
controle humano e que ambos deveriam ser compreendidos separadamente. Ockam, em
direção semelhante, defendia que a razão não serve de apoio à teologia, porque
esta tem apoio somente na fé.
Estes dois pensadores, claro,
tratando seu pensamento com certo simplismo, trabalharam com um certo
isolamento entre a realidade material e não material, ou natural e
sobrenatural. Eles não negaram ambas, mas as dividiram.
O passo seguinte na filosofia foi a
negação da sobrenaturalidade da realidade e a afirmação de exclusividade da
naturalidade como a única esfera de existência. Este processo filosófico foi
chamado de “naturalismo”.
Portanto, o que vemos em debate nos
dias atuais não é nem a sobreposição das duas realidades, mas a real existência
da sobrenaturalidade. Portanto, temos de admitir, o cristianismo deu um passo
para traz no que diz respeito ao conceito bíblico de realidade.
Temos, assim, tanto mais confirmada a palavra profética, e
fazeis bem em atendê-la, como a uma candeia que
brilha em lugar tenebroso, até que o dia clareie e
a estrela da alva nasça em
vosso coração (2Pedro 1.19).
Pedro trata a condição humana
natural como sobreposta à realidade sobrenatural, mas nos diz que para que este
ponto seja compreendido precisamos vencer as “trevas” que encobrem a nossa
visão.
O conceito de
pecado como encobrimento da realidade sobrenatural
Um dos pontos que tenho trabalhado
nos estudos bíblicos que faço sobre realidade e visão de mundo é o conceito de
pecado.
Claro que em sua base bíblica, o
pecado é a transgressão da “Lei de Deus”, contudo, o conceito de “Lei de Deus”
não pode ser encerrado em um conjunto de ditames do tipo: faça ou não faça.
Pedro está falando da “Lei de Deus”
quando se refere às escrituras e aos ensinos dos apóstolos. Portanto, o que
estamos tratando aqui é que a Lei de Deus é a “candeia que brilha nas trevas e
revela que o sobrenatural e o natural estão ligados”. Ou seja, o pecado é a
transgressão daqueles ensinos que nos revelam a ligação entre a esfera natural
e sobrenatural da realidade.
Em outras palavras, o que venho
pensando sobre o pecado é que o seu principal efeito é que ele nos privou de
ver o mundo de uma forma completa, mantendo nosso coração alijado de perceber a
ligação entre a Criação e o Criador, entre a naturalidade e a
sobrenaturalidade.
Quando, portanto, dizemos que não
existe Deus e vivemos neste mundo sem considerar a realidade sobrenatural, da
qual Deus é o fundamento, então, vivemos uma “mentira” e não uma realidade. Nossa
realidade, quando vivida sem Deus é “ficcional”.
Diz o insensato no seu coração: Não há Deus. Corrompem-se e praticam
iniqüidade; já não há quem faça o bem. Do céu, olha Deus para os filhos dos homens, para ver se há quem
entenda, se há quem busque a Deus (Salmo 53.1-2).
A falha na consideração integral da
realidade, baseada na intima relação entre a sobrenaturalidade e naturalidade é
um erro conceitual que a Bíblia chama de loucura. Ela diz que este é o
princípio da “ação iníqua”, porque desfruta da realidade criada, sem perceber
nela o seu “sentido”, que é apontar para Deus.
As Escrituras Apontam
para a Unidade da Realidade
As Escrituras propõem uma abertura
de nossos olhos produzida pela obra do Espirito Santo que nos conduz à “verdade”.
Portanto, a Bíblia não é só um livro de origem “sobrenatural”, mas um livro que
nos guia à sobrenaturalidade como fundamento da “naturalidade” da Criação.
A ira de Deus
se revela dos céus contra toda impiedade e perversão dos homens que detém a
verdade pela injustiça; porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto
entre ele, porque deus lhes manifestou. Porque os atributos invisíveis de Deus,
assim como o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente
se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas
que foram criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis; porquanto, tendo
conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças;
antes, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração
insensato (Romanos 1.18-21).
O ponto distintivo deste texto é que ele mostra que a
corrupção do coração humano (mente) produziu um modo de vida que nega a verdade
e vive por meio de sua deturpação um tipo de vida iniqua.
O propósito das Escrituras (Revelação Especial), portanto, é
a iluminação da nossa mente entenebrecida, nos levando a considerar a realidade
como um todo completo e, por meio disto, recuperar uma visão integral da
realidade, fazendo com que todas as coisas nos revelem Deus (Revelação Geral).
Conclusão
Quando tomamos as Escrituras para as ler, não podemos nos
deter exclusivamente em lê-las como fruto da sabedoria humana meramente
considerada. Também não podemos lê-la como uma revelação sobre uma vida
espiritual ou sobrenatural que nada tem a ver com o dia a dia. Antes, devemos
ler a Escritura como um manual de desvendamento da realidade, uma espécie de
guia para que nos movamos em uma realidade total da vida e vivamos a VERDADE.