domingo, 19 de fevereiro de 2017

Aula 2 - Prolegômenos - Naturalidade e Sobrenaturalidade na Bíblia



AULA 02
Naturalidade e Sobrenaturalidade da Bíblia


Introdução
Na aula 01, tratamos da Revelação Geral e Especial, mostrando como existe um relacionamento fundamental entre ambas, que se trata de como ambas e completam e se tornam o fundamento de toda a interpretação da realidade.
Essa realidade que interpretamos pode ser considerada em termos de sua naturalidade. Ou seja, as coisas criadas, que o ser humano interpreta pesando valores e que apontam para Deus, são, em si, uma realidade natural. Contudo, por detrás da realidade natural da Criação e como seu fundamento, existe a sobrenaturalidade, que é a realidade do próprio Deus e que precisa ser considerada como fundamento da naturalidade das coisas, afinal, é a sua origem e sentido.
Quando olhamos o mar o nos deliciamos com sua beleza em termos de sua grandiosidade, força natural, regularidade e a vastidão de seres que segreda, estamos desfrutando da beleza de sua naturalidade. Não obstante, o mar é um elemento da Criação que aponta para o Criador, portanto, aponta para a sobrenaturalidade da realidade que lhe preserva, controla e limita.
Essa mesma relação devemos entender quando nos aproximamos das Escrituras. E por isso, precisamos considerar os valores naturais das Escrituras em companhia constante da sua sobrenaturalidade latente.

Escrita por homens
A naturalidade das Escrituras pode ser primordialmente considerada pelo fato de ser um livro escrito por homens.
O conteúdo bíblico, embora fale até mesmo de coisas que estão além da naturalidade, como por exemplo, o céu, é o resultado do labor natural de homens de Deus.
Visto que muitos houve que empreenderam uma narração coordenada dos fatos que entre nós se realizaram, conforme nos transmitiram os que desde o princípio foram deles testemunhas oculares e ministros da palavra, igualmente a mim me pareceu bem, depois de acurada investigação de tudo desde sua origem, dar-te por escrito, excelentíssimo Teófilo, uma exposição em ordem, para que tenhas plena certeza das verdades em que foste instruído. (Lucas 1.1-4).
Lucas atesta que a obra que escreveu foi o resultado de um empreendimento de pesquisa, a partir da oitiva de testemunhas e análise dos relatos que lhe foram feitos e, portanto, o resultado de um trabalho dentro da ordem natural das coisas.
O Apóstolo Paulo pode ser considerado o sistematizador teológico da fé cristã. Foi ele quem discerniu e ensinou o fundamento da obra da justificação, embora já houvesse suas sementes nos registros do Velho Testamento e nas palavras de Cristo, a clareza desta doutrina vem na obra teológica de Paulo, em suas cartas.
E tende por salvação a longanimidade de nosso Senhor, como igualmente o nosso amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada, ao falar acerca destes assuntos, como, de fato, costuma fazer em todas as suas epístolas, nas quais há certas coisas difíceis de entender, que os ignorantes e instáveis deturpam, como também deturpam as demais Escrituras, para a própria destruição deles (2Pedro 3.15-16).
Pedro, falando sobre o trabalho do apóstolo Paulo, nos diz que fora o resultado de uma sabedoria peculiar que ele empreendeu ao considerar e sistematizar a doutrina da salvação. A sabedoria de Paulo é um componente natural e os textos que produziu, fruto desta reflexão, devem ser considerados uma obra natural, de um homem sábio.
Da mesma forma, podemos pontuar sobre livros históricos, cujo propósito de registro dos acontecimentos é claramente um labor da ordem natural dos acontecimentos humanos.
Quanto aos mais atos de Salomão, a tudo quanto fez, e à sua sabedoria, porventura, não estão escritos no Livro da História de Salomão?(1Reis 11.41).
O mote constante do Livro dos Reis: “...não estão escritos no Livro da História dos Reis... (14.29; 15.7; 15.23 etc)”, aponta para o fato de que era o produto do registro de observadores, estudiosos da história, do mesmo modo como alguns escreveram a história das guerras jônicas, dos egípcios, dos hititas etc.
Não há nenhum problema em se considerar a Bíblia um livro da ordem natural das coisas, como o fruto do desenvolvimento baseado em aspectos da cultura humana. A Bíblia é um livro escrito por homens.
O problema quanto à consideração da naturalidade da Bíblia começa quando a desconectamos de sua realidade sobrenatural. Ou seja, quando isolamos a naturalidade das Escrituras da sua sobrenaturalidade.

Inspirada Por Deus
Na próxima aula, iremos abordar a “Doutrina da Inspiração” com mais detalhes, procurando explicar melhor o que é e como funciona o ato divino de guiar os seus servos para o registro da Escritura. Aqui, porém, ficaremos no âmbito mais conceitual da inspiração, propondo uma abordagem integral da Escritura, somando a sua naturalidade à sua sobrenaturalidade.
Embora a Bíblia seja um produto da cultura humana, ela não é só um produto humano, ou natural. As Escrituras são resultado de um ato sobrenatural de Deus de se revelar.
Quando Pedro atestou que as cartas de Paulo era fruto de sua sabedoria, ele destacou que esta sabedoria não era meramente o resultado das ligações elétricas do cérebro em contato e observação da realidade, Pedro nos diz que tal sabedoria havia sido “dada” (por Deus) à Paulo.
E tende por salvação a longanimidade de nosso Senhor, como igualmente o nosso amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada (2Pedro 3.15).
Ao se referir à “sabedoria que foi dada a Paulo”, Pedro está claramente nos dizendo que os escritos paulinos eram fruto do trabalho intelectual dele, mas que tal capacidade não era meramente natural. O mesmo Pedro, foi testemunha da sobrenaturalidade da realidade, quando no Monte da Transfiguração, viu que o mundo natural é sobreposto por uma realidade sobrenatural e estes estão intimamente unidos. Ele ainda se recorda desta intima relação entre o natural e o sobrenatural na voz que se ouviu no momento do batismo de Cristo.
Porque não vos demos a conhecer o poder e a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo seguindo fábulas engenhosamente inventadas, mas nós mesmos fomos testemunhas oculares da sua majestade, pois ele recebeu, da parte de Deus Pai, honra e glória, quando pela Glória Excelsa lhe foi enviada a seguinte voz: Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo. Ora, esta voz, vinda do céu, nós a ouvimos quando estávamos com ele no monte santo (2Pedro 1.16-18).  
Neste ponto, o que percebemos é que Pedro está defendo seus escritos e dos outros apóstolos de acusações tais como: é somente uma fantasia ou um devaneio, igual ao dos escritores gregos ou romanos. Pedro, em defesa da sobrenaturalidade do ensino dos apóstolos, apela para o ponto mais concreto de sua observação da intima relação entre naturalidade e sobrenaturalidade, aqueles dois momentos em que o véu que esconde esta relação foi rompido: a voz de Deus que foi ouvida no batismo de Cristo e o Monte da Transfiguração, quando a glória de Cristo foi revelada concretamente e ele, Tiago e João viram.
Temos, assim, tanto mais confirmada a palavra profética, e fazeis bem em atendê-la, como a uma candeia que brilha em lugar tenebroso, até que o dia clareie e a estrela da alva nasça em vosso coração, sabendo, primeiramente, isto: que nenhuma profecia da Escritura provém de particular elucidação; porque nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade humana; entretanto, homens [santos] falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo (2Pedro 1.19-21).
Pedro usa sua experiência com a sobreposição da realidade sobrenatural à natural para explicar o que realmente é o ensino que ele e os outros apóstolos estavam entregando à igreja: uma revelação da verdade divina nascida em Deus e entregue aos homens por meio naturais, os escritores humanos. Esta é a ideia que ele defende quando diz que os homens que falaram, falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo.

Naturalidade e Sobrenaturalidade Unidas na Bíblia e na Vida
Resumindo um tanto a história do pensamento cristão, podemos dizer que o final do período Medievo trouxe à luz uma forte influência aristotélica sobre a visão de mundo cristã. Dois nomes, vamos destacar neste empreendimento: Tomás de Aquino e Guilherme de Ockam. Estes dois expoentes do pensamento cristão, chegaram à conclusões bem próximas sobre a realidade.
Eles dividiram fortemente a realidade sobrenatural da natural. Tomás de Aquino atribuiu alguma relação à estas suas realidades no momento dos milagres e Ockam simplesmente os tornou incomunicáveis. Aquino trabalhou com ideia de “Natureza e Graça” e Ockam, empreendeu o projeto conhecido como “A Navalha de Ockam”.
Aquino dizia que o mundo da natureza, da ciência natural era tudo o que ocorria na esfera das realidades concretas e o mundo da graça, o sobrenatural, ocorria numa esfera fora do controle humano e que ambos deveriam ser compreendidos separadamente. Ockam, em direção semelhante, defendia que a razão não serve de apoio à teologia, porque esta tem apoio somente na fé.
Estes dois pensadores, claro, tratando seu pensamento com certo simplismo, trabalharam com um certo isolamento entre a realidade material e não material, ou natural e sobrenatural. Eles não negaram ambas, mas as dividiram.
O passo seguinte na filosofia foi a negação da sobrenaturalidade da realidade e a afirmação de exclusividade da naturalidade como a única esfera de existência. Este processo filosófico foi chamado de “naturalismo”.
Portanto, o que vemos em debate nos dias atuais não é nem a sobreposição das duas realidades, mas a real existência da sobrenaturalidade. Portanto, temos de admitir, o cristianismo deu um passo para traz no que diz respeito ao conceito bíblico de realidade.
Temos, assim, tanto mais confirmada a palavra profética, e fazeis bem em atendê-la, como a uma candeia que brilha em lugar tenebroso, até que o dia clareie e a estrela da alva nasça em vosso coração (2Pedro 1.19).
Pedro trata a condição humana natural como sobreposta à realidade sobrenatural, mas nos diz que para que este ponto seja compreendido precisamos vencer as “trevas” que encobrem a nossa visão.

O conceito de pecado como encobrimento da realidade sobrenatural
Um dos pontos que tenho trabalhado nos estudos bíblicos que faço sobre realidade e visão de mundo é o conceito de pecado.
Claro que em sua base bíblica, o pecado é a transgressão da “Lei de Deus”, contudo, o conceito de “Lei de Deus” não pode ser encerrado em um conjunto de ditames do tipo: faça ou não faça.
Pedro está falando da “Lei de Deus” quando se refere às escrituras e aos ensinos dos apóstolos. Portanto, o que estamos tratando aqui é que a Lei de Deus é a “candeia que brilha nas trevas e revela que o sobrenatural e o natural estão ligados”. Ou seja, o pecado é a transgressão daqueles ensinos que nos revelam a ligação entre a esfera natural e sobrenatural da realidade.
Em outras palavras, o que venho pensando sobre o pecado é que o seu principal efeito é que ele nos privou de ver o mundo de uma forma completa, mantendo nosso coração alijado de perceber a ligação entre a Criação e o Criador, entre a naturalidade e a sobrenaturalidade.
Quando, portanto, dizemos que não existe Deus e vivemos neste mundo sem considerar a realidade sobrenatural, da qual Deus é o fundamento, então, vivemos uma “mentira” e não uma realidade. Nossa realidade, quando vivida sem Deus é “ficcional”.
Diz o insensato no seu coração: Não há Deus. Corrompem-se e praticam iniqüidade; já não há quem faça o bem. Do céu, olha Deus para os filhos dos homens, para ver se há quem entenda, se há quem busque a Deus (Salmo 53.1-2).
A falha na consideração integral da realidade, baseada na intima relação entre a sobrenaturalidade e naturalidade é um erro conceitual que a Bíblia chama de loucura. Ela diz que este é o princípio da “ação iníqua”, porque desfruta da realidade criada, sem perceber nela o seu “sentido”, que é apontar para Deus.
As Escrituras Apontam para a Unidade da Realidade
As Escrituras propõem uma abertura de nossos olhos produzida pela obra do Espirito Santo que nos conduz à “verdade”. Portanto, a Bíblia não é só um livro de origem “sobrenatural”, mas um livro que nos guia à sobrenaturalidade como fundamento da “naturalidade” da Criação.  
A ira de Deus se revela dos céus contra toda impiedade e perversão dos homens que detém a verdade pela injustiça; porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre ele, porque deus lhes manifestou. Porque os atributos invisíveis de Deus, assim como o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis; porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato (Romanos 1.18-21).
O ponto distintivo deste texto é que ele mostra que a corrupção do coração humano (mente) produziu um modo de vida que nega a verdade e vive por meio de sua deturpação um tipo de vida iniqua.
O propósito das Escrituras (Revelação Especial), portanto, é a iluminação da nossa mente entenebrecida, nos levando a considerar a realidade como um todo completo e, por meio disto, recuperar uma visão integral da realidade, fazendo com que todas as coisas nos revelem Deus (Revelação Geral).

Conclusão
Quando tomamos as Escrituras para as ler, não podemos nos deter exclusivamente em lê-las como fruto da sabedoria humana meramente considerada. Também não podemos lê-la como uma revelação sobre uma vida espiritual ou sobrenatural que nada tem a ver com o dia a dia. Antes, devemos ler a Escritura como um manual de desvendamento da realidade, uma espécie de guia para que nos movamos em uma realidade total da vida e vivamos a VERDADE.


3 comentários:

  1. Olhar a bíblia de forma concreta com um coração iníquo é muito difícil.

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  2. Olhar a bíblia de forma concreta com um coração iníquo é muito difícil.

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    1. Não é somente difícil... mas impossível! Porque o mistério escondido, que desvenda a realidade absoluta de Deus em tudo, só pode ser conhecido, mediante a ação do Espírito Santo. O máximo que o incrédulo consegue em relação à verdade, é aprendê-la por meio da imitação da igreja.

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